O menino é o pai do homem
Por Lya Luft
“A infância deixa rastros em nossa memória, como sulcos num rosto ou num campo lavrado”
Esta frase do poeta inglês Wordsworth – “O menino é o pai do homem” – serviu como título para uma crônica de Machado de Assis, e agora eu a “roubo” ao comentar o peso da infância em nossa vida adulta: pois nascemos da criança nascida de nossa mãe.
Nossa primeira raiz, a mais funda, vem do garoto alegre correndo com seus amigos ou maltratado em casa; da menina que se sentia amada ou brutalizada, quem sabe ridicularizada. Até o fim guerreamos com aquelas arcaicas realidades ou fantasmas: anistiar uma infância difícil é trabalho de guerreiros, e guerrear é parte do destino humano.
Somos filhos daquelas crianças. Temos de crescer também superando o que ficou de inibidor, até aniquilador, daqueles tempos e daquelas experiências. Vamos desabrochar melhor com o adubo do afeto, do bom humor e do respeito, e definhar no veneno da excessiva exigência, ou da aridez – mesmo que houvesse brinquedos caros pelo quarto.
Nosso comportamento adulto é assim marcado, mas não fatalmente determinado. Bem diferente de assumir o papel de vítima, eternos chorões acusando pai e mãe, curtindo ressentimentos que tornarão bem mais difícil inventar outros jeitos de viver a nossa própria família, quando adultos.
Neste mundo em mudanças rápidas e complicadas, a família, aquela que nos foi legada sem escolha nossa, e essa que criamos para nós (para felicidade ou desastre), volta a ter grande importância. Essa ênfase no conceito “família” como ponto de apoio e construção numa sociedade fragmentada e desorientada se dá, ironicamente, quando essa mesma família sofre grandes transformações: os casamentos já não são para sempre (com exceções felizes ou sofridas).
Crianças aprendem a lidar com novos sentimentos em relacionamentos novos: a namorada do pai, o companheiro da mãe, os meiosirmãos. Filhos têm muito mais liberdade; os pais, menos autoridade. Quebraram-se em muitas coisas padrões de comportamento que duravam décadas ou séculos, e ainda não se cristalizaram novos. Talvez nem se cristalizem mais, nessa cultura do efêmero.
Mas continuamos filhos das crianças que fomos. Escrevendo Mar de Dentro, memórias de minha infância, entendi que para me conhecer um pouco melhor, e à minha obra, é preciso procurar ali: pois a menina que eu era é mãe da mulher que sou.
“Qual seu conceito de família, de que a senhora fala tanto?” é uma pergunta freqüente. Repito que é aquele grupo de pessoas – às vezes uma pessoa só – das quais eu sei que, mesmo se em dado momento não me entendem ou aprovam, ainda assim me amam e me respeitam.
Bonito mas difícil? Difícil.
Pois, ou nos ensinam que filhos são objeto nosso, nossa total responsabilidade, ou que pais têm de ser perfeitos – coisa assustadora nos dois casos, pois a realidade não é assim. Talvez haja uma visão mais equilibrada, até onde se equilibram relacionamentos humanos. Filhos são, sim, grave responsabilidade nossa. Mas são ao mesmo tempo pessoas: precisam crescer, amparados e cuidados pelo nosso amor – não podados pela nossa insegurança.
Pais deveriam, sim, ser presentes, responsáveis, interessados e carinhosos – não idealizados pela nossa infantilidade, e depois cobrados por não corresponderem a essa fantasia.
Falar é fácil, eu sei. Escrever mais ainda, mas é minha profissão. Se a vida é um desafio, por isso tão interessante, construir uma família pode ser, mais do que contratempo e contrariedade, um desafio especial, e uma especial fonte de crescimento.
Como agricultores, há que pôr mãos à obra: às vezes no barro, lidando com produtos tóxicos (ah, a alma intoxicada…), esperando a chuva que não vem, combatendo a seca que mata e a peste que estrangula. Mas quando a planta espia da terra escura, e começa a crescer com folhinhas ao vento e caule forte, tudo passa a ter outro sentido, sobretudo nossas lutas, dilemas e contrariedades.
A criança que fomos continua nos parindo pela vida afora, como nós parimos, com amor e dor e encantamento, cada dia e cada noite, esses filhos nossos – e a nós mesmos neles.
Fonte: Revista Veja nº. 1970 – 23.08.2006, em Reflexões Diárias